quinta-feira, 5 de maio de 2011

Camelos também choram (este texto complementa o vídeo abaixo)


Encontrei esta pérola escrita por
Affonso Romano de Sant’Anna.
É um texto um pouco longo, mas, garanto vale a pena ler.
Vou deixar guardado aqui com muito carinho.


CAMELOS TAMBÉM CHORAM

Eu tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando o
crepúsculo, às vezes, choram.
Mas agora está aí esse filme “Camelos também
choram”.
Contudo,  esse filme feito sobre uma comunidade de pastores
de ovelhas e camelos, lá na Mongólia, mostra que os
camelos choram, mas choram não diante da morte, mas em
certa circunstância que faria chorar qualquer ser humano.
E na plateia, eu vi, os não camelos também choravam.
 Para nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza
do asfalto e a indiferença dos muros e vitrinas; para
nós que perdemos o diálogo com plantas e animais, e, por
consequência, conosco mesmos, testemunhar com aquela bela
família de mongóis o nascimento de um filhote de camelo
e sua relação com a mãe é uma forma de reencontrar a
nossa própria e destroçada humanidade.
É isto: eles vivem num deserto.  Terra árida, pedregosa.
Eles, dentro daquelas casas redondas de lona e madeira, que
podem ser montadas e desmontadas. Lá fora, um vento
permanente ou o assombro do silêncio e da escuridão.  E
as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a paisagem e
sendo a fonte de vida dos humanos.
Sucede, então, que a rotina é quebrada com o parto
difícil de um camelinho.
Por isto, a mãe camela o rejeita. O filho ali, branquinho,
mal se sustentando sobre as pernas, querendo mamar e ela
fugindo, dando patadas e indo acariciar outro filhote,
enquanto o rejeitado geme e segue inutilmente a mãe na
seca paisagem.
A família mongol e vizinhos tentam forçar a mãe camela
a alimentar o filho. Em vão.
Só há uma solução, diz alguém da família, mandar
chamar o músico.
Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para
testemunhar um milagre.
 E o milagre começou musicalmente a acontecer.
Dois meninos montam agilmente seus camelos e vão a uma
vila próxima chamar o músico.
É uma vila pobre, mas já com coisas da modernidade,
motos, televisão, e, na escola de música, dentro daquele
deserto, jovens tocam instrumentos e dançam, como se a
arte brotasse lindamente das pedras.
O professor de música, como se fosse um médico de aldeia
chamado para uma emergência, viaja com seu instrumento de
arco e cordas para tentar resolver a questão da
rejeição materna.
Chega. E ali no descampado, primeiro coloca o instrumento
com uma bela fita azul sobre o dorso da mãe camela. A
família mongol assiste à cena. Um vento suave começa a
tanger as cordas do instrumento. A natureza por si mesma
harpeja sua harmônica sabedoria.
A camela percebe. Todos os camelos percebem uma música
reordenando suavemente os sentidos.
Erguem a cabeça, aguçam os ouvidos, e esperam.

A seguir, o músico retoma seu instrumento e começa a
tocá-lo, enquanto a dona da camela afaga o animal e canta.
E enquanto cordas e voz soam, a mãe camela começa a
acolher o filhote, empurrando-o docemente para suas tetas.
E o filhote antes rejeitado e infeliz, vem e mama, mama,
mama desesperadamente feliz.
E enquanto ele mama e a música continua, a câmera mostra
em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após
outras dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a
natureza se reencontrou a si mesma, a rejeição foi
superada, o afeto reuniu num  todo amoroso os apartados
elementos.
Nós, humanos, na plateia, olhamos aquilo estarrecidos.
Maravilhados.
Os mongóis na cena constatam apenas mais um exercício de
sua milenar sabedoria.
E nós, que perdemos o contato com o micro e o macrocosmo
ficamos bestificados com nossa ignorância de coisas tão
simples e essenciais.
Bem que os antigos falavam da terapêutica musical. Casos
de instrumentos que abrandavam a fúria, curavam a surdez,
a hipocondria e saravam até a mania de perseguição.
Bem que o pensamento místico hindu dizia que a vida se
consubstancia no universo com o primeiro som audível - um
ré bemol - e que a palavra só surgiria mais tarde.
Bem que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que o
universo era uma partitura musical, que o intervalo musical
entre a Terra e a Lua era de um tom  e que o cosmos era
regido pela harmonia das esferas.
Os primitivos na Mongólia sabem disto. Os camelos
também. Mas nós, os pós-modernos cultivamos a
rejeição, a ruptura e o ruído.

Um comentário:

  1. Limerique

    Camelas sofrem depressão pós parto
    Recusam alimentar bebê no "quarto"
    A música as socorre
    E o filho não morre
    E o camelinho mama até ficar farto.

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